Carta do
Zé agricultor para Luis da cidade.
A carta a
seguir - tão somente adaptada por Barbosa Melo - foi escrita por Luciano
Pizzatto que é engenheiro florestal, especialista em direito sócio ambiental e
empresário, diretor de Parque Nacionais e Reservas do IBDF-IBAMA 88-89,
detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia.
Carta do
Zé agricultor para Luis da cidade.
Prezado
Luis, quanto tempo.
Eu sou o
Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte
escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha
professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia
légua para pegar o caminhão por isso o sapato sujava.
Se não
lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu
descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a
caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De
madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia
com sono. Do Zé Cochilo você lembra né Luis?
Pois é.
Estou pensando em mudar para viver ai na cidade que nem vocês. Não que seja
ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que
estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos ai da cidade. To vendo
todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio
ambiente.
Veja só.
O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de
estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já
têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes
por dentro uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.
Minha
água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem
do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar
uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né
Luis?
Pra
ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né ..) contratei Juca, filho de um
vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo
direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos
fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas
aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse
tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que
não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os
dias da semana ai não param de fazer leite. Ô, bichos aí da cidade sabem se
guiar pelo calendário?
Essas
pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o beliche tava 2 cm
menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encumpridar uma cama, só comprando
outra né Luis? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que
tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no
quarto do Juca.
Disseram
ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do
salário dele. Bom Luis, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado,
mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Mas eu
acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na
cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra
delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho
para acudi-lo.
Depois
que o Juca saiu eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite às 5 e
meia, ai eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o carro da
cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou
aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.
Os porcos
eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro
para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo
e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha
que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele
tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta
dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que
vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas.
O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não ai mandar me prender,
mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luis, ai quando
vocês sujam o rio também pagam multa grande né?
Agora
pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio.
Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata
ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar,
nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios ai da cidade. A pocilga
já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada,
quando vou na capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida
e lixo boiando pra todo lado.
Mas não é
o povo da cidade que suja o rio, né Luis? Quem será? Aqui no mato agora quem
sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora!.
Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então
resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.
Fui no
escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da
capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim fazer um laudo,
para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra
fazer o tal laudo ai eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei.
Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do
Promotor
porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau.
Acho que desta vez vou ficar preso.
Tô
preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil
reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio
numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da
ecologia. Vou para a cidade, ai tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não
quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei
é pra todos.
Eu vou
morar ai com vocês, Luis. Mais fique tranqüilo, vou usar o dinheiro da venda do
sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que
pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe
pra levar pra casa. Ai é bom que vocês e só abrir a geladeira que tem tudo. Nem
dá trabalho, nem planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a
geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os
criminosos aqui da roça.
Até mais
Luis.
Ah,
desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado pois não existe por
aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.
(Todos os
fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros. A
sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento
ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)
É infelizmente isso acontece...
ResponderExcluirPrecisamos ensinar mais as crianças a dar valor aos que realmente moram na roça e nos alimentam com seu trabalho árduo.