Filosofia moderna
Marilena Chaui
Universidade de S. Paulo, USP
1. Problemas de cronologia: Quando
começa a "filosofia moderna"?
Frequentemente, os historiadores
da filosofia designam como filosofia moderna aquele saber
que se desenvolve na Europa durante o século XVII tendo como referências
principais o cartesianismo — isto é, a filosofia de René
Descartes —, a ciência da Natureza galilaica — isto é,
a mecânica de Galileu Galilei —, a nova ideia do conhecimento
como síntese entre observação, experimentação
e razão teórica baconiana — isto é, a filosofia
de Francis Bacon — e as elaborações acerca da origem e das
formas da soberania política a partir das ideias de direito
natural e direito civil hobbesianas — isto é, do filósofo
Thomas Hobbes.
No entanto, a cronologia pode ser
um critério ilusório, pois o filósofo Bacon publica
seus Ensaios em 1597, enquanto o filósofo Leibniz, um dos
expoentes da filosofia moderna, publica a Monadologia e os Princípios
da Natureza e da Graça em 1714, de sorte que obras essenciais
da modernidade surgem antes e depois do século XVII. Muitos historiadores
preferem localizar a filosofia moderna no período designado como
Século de Ferro, situado entre 1550 e 1660, tomando como
referência as grandes transformações sociais, políticas
e econômicas trazidas pela implantação do capitalismo,
enquanto outros consideram decisivo o período entre 1618 e 1648,
isto é, a Guerra dos Trinta Anos, que delineia a paisagem política
e cultural da Europa moderna.
Entretanto, essas datas e períodos
podem convidar a um novo equivoco, qual seja, o de estabelecer uma relação
causal direta entre acontecimentos sócio-políticos e a constituição
dos conhecimentos filosóficos, científicos e técnicos,
ou a criação artística. Relação entre
eles, sem dúvida, existe. Mas não é linear nem causal:
idéias e criações podem estar em avanço ou
em atraso com relação aos acontecimentos sócio-políticos
e econômicos, não porque pensadores e artistas sejam criaturas
fora do espaço e do tempo, mas porque tudo depende da maneira como
enfrentam questões colocadas por sua época, indo além
ou ficando aquém delas. Em resumo, a relação entre
uma obra e seu tempo não é a do mero reflexo intelectual
de realidades sociais dadas. Um pensador e um artista se dirigem aos seus
contemporâneos, mas isto não significa que sejam, em suas
idéias e criações, contemporâneos de seus destinatários.
Captam as questões colocadas por sua época, mas isto não
significa que sua época capte as respostas por eles encontradas
ou criadas. Por esses motivos, muitos historiadores das idéias consideram
que pensadores e artistas, afinal, criam seu próprio público,
as obras produzem seus destinatários, tanto os contemporâneos
quanto os pósteros.
A cronologia pode ser enganadora
quando pretendemos traçar os contornos de uma época de pensamento.
Assim, por exemplo, a inauguração da idéia moderna
da política como compreensão da origem humana e das formas
do Poder, como compreensão do Poder enquanto solução
que uma sociedade dividida internamente oferece a si mesma para criar simbolicamente
uma unidade que, de fato, não possui, é uma inauguração
bem anterior ao século XVII, pois foi feita por Maquiavel. Por outro
lado, a idéia de que a política é uma esfera de ação
laica ou profana, independente da religião e da Igreja, tema caro
aos filósofos modernos, foi desenvolvida no final da Idade Média
por um jurista como Marsílio de Pádua. Também a idéia
do valor e da importância da observação e da experiência
para o conhecimento humano aparece nos fins da Idade Média com filósofos
como Roger Bacon ou Guilherme de Ockam. A extrema valorização
da capacidade da razão humana para conhecer e transformar a realidade
— a confiança numa ciência ativa ou prática
em oposição ao saber contemplativo — é uma
das características principais do chamado Humanismo, desenvolvido
durante a Renascença. Em contraposição à perspectiva
medieval, que era teocêntrica (Deus como centro do conhecimento
e da política), os humanistas procuram laicizar o saber, a moral
e a política, tomando como centro o Homem Virtuoso.
Para contornar essas dificuldades,
muitos historiadores da filosofia se habituaram a designar o Renascimento
como um período de transição para a modernidade
ou a ruptura inicial face ao saber medieval que preparou o advento da filosofia
moderna. Nesta perspectiva, o Renascimento apresentaria duas características
principais: por um lado, seria um momento de grandes conflitos intelectuais
e políticos (entre platônicos e aristotélicos, entre
humanistas ateus e humanistas cristãos, entre Igreja e Estado, entre
academias leigas e universidades religiosas, entre concepções
geocêntricas e heliocêntricas, etc.), e, por outro lado, um
momento de indefinição teórica, os renascentistas
não tendo ainda encontrado modos de pensar, conceitos e discussões
que tivessem abandonado definitivamente o terreno das polêmicas medievais.
O Renascimento teria sido época de grande efervescência intelectual
e artística, de grande paixão pelas novas descobertas quanto
à Natureza e ao Homem, de redescobertas do saber greco-romano liberado
da crosta interpretativa com que o cristianismo medieval o recobrira, de
desejo de demolir tudo quanto viera do passado, desejo favorecido tanto
pela chamada Devoção Moderna (a tentativa de reformar
a religião católica romana sem romper com a autoridade papal)
quanto pela Reforma Protestante e pelas guerras de religião,
que abalaram a idéia de unidade européia como unidade político-religiosa
e abriram as portas para o surgimento dos Estados Territoriais Modernos.
Ao mesmo tempo, no entanto, a indefinição
e os conflitos teriam feito da Renascença um período de crise.
Em primeiro lugar, crise da consciência, pois a descoberta do universo
infinito por homens como Giordano Bruno deixava os seres humanos sem referência
e sem centro; em segundo lugar, crise religiosa, pois tanto a Devoção
Moderna quanto a Reforma Protestante criaram infinidade de tendências,
seitas, igrejas e interpretações da Sagrada Escritura, dos
dogmas e dos sacramentos, de modo que a referência à idéia
de Cristandade, central desde Carlos Magno, se perdera; em terceiro lugar,
crise política, pois a ruptura do centro cósmico (o universo
é infinito), a perda do centro religioso (o papado), a perda do
centro teórico (geocentrismo, aristotelismo tomista, mundo hierárquico
de seres e de ideias) foi também a perda do centro político
(o Sacro Império Romano Germânico destroçado pelos
reinos modernos independentes e pelas cidades burguesas do capitalismo
em expansão) e de suas instituições (papa, imperador,
Direito Romano, Direito Canônico, relações sociais
determinadas pela hierarquia da vassalagem entre os nobres e pela clara
divisão entre senhores e servos, das relações econômicas
definidas pela posse da terra e pela agricultura e pastoreio, com o artesanato
urbano apenas subsidiário para o pequeno comércio dos burgos).
O resultado da transição,
da indefinição e da crise, conforme muitos historiadores,
foi o ceticismo filosófico, cujos maiores expoentes
teriam sido Montaigne e Erasmo.
Só muito recentemente, os
historiadores das idéias e da história sócio-política
desfizeram essa imagem da transitoriedade e indefinição renascentistas,
mostrando haver o Renascimento criado um saber próprio, com conceitos
e categorias novos e sem os quais a filosofia moderna teria sido impossível.
Assim, por exemplo, o historiador
das idéias e das instituições européias, Michel
Foucault, no livro As Palavras e as Coisas (Les Mots et les Choses),
considera o Renascimento um período em que os conhecimentos são
regulados por um conceito fundamental: o conceito de Semelhança,
graças ao qual são pensadas as relações entre
seres que constituem toda a realidade, motivo pelo qual ciências
como a medicina e a astronomia, disciplinas como a retórica e a
história, teorias sobre a natureza humana, a sociedade, a política
e a teologia empregam conceitos como os de simpatia e antipatia (nas doenças
e nos movimentos dos astros), de imitação ou emulação
(entre os seres humanos, entre as coisas vivas, entre humanos e coisas,
entre o visível e o invisível, como no caso da alquimia),
conceitos que nada têm a ver com a "magia" como superstição,
mas com a magia como forma de revelação do oculto pelos poderes
da mente humana, isto é, a Semelhança define um certo tipo
de saber e um certo tipo de poder. Também é
central o conceito de amizade, como atração natural
e espontânea dos iguais (animais, humanos) e que serve de referência
para pensar-se a figura do tirano como inimigo do povo e criador de reinos
regulados pela inimizade recíproca (forma de compreender as divisões
sociais e os conflitos entre poder e sociedade).
A Natureza é pensada como
um grande Todo Vivente, internamente articulado e relacionado pelas formas
variadas da Semelhança, indo dos minerais escondidos no fundo da
terra ao brilho dos astros no firmamento, das coisas aos homens, dos homens
a Deus. Essa ideia de totalidade vivente se exprime na frase de
Giordano Bruno: "A Natureza opera a partir do Centro" (La Natura opra
dal centro). Essa mesma idéia permite distinguir uma história
humana e uma história natural no sentido da diferença entre
ações humanas, que têm poder de transformação
sobre a realidade, e as ações que nada podem sobre a Natureza
enquanto obra divina, ideia que se exprime na filosofia da história
de Vico.
A idéia de imitação
aparece na teoria política quando alguns humanistas (sobretudo os
humanistas cristãos como Erasmo e Thomas Morus) consideram que as
qualidades (virtudes ou vícios) dos governantes são um espelho
para a sociedade inteira, de tal modo que num regime tirânico os
súditos serão tiranos também. Essa ideia de
um imenso espelho reaparece no ensaio de La Boétie, Discurso
da Servidão Voluntária, mas com uma grande inovação:
não é o tirano que cria uma sociedade tirânica, mas
é a sociedade tirânica (a sociedade onde homens desejam a
servidão) que produz o tirano, o seu espelho.
A imitação também
aparece no grande prestígio da retórica que ensina a imitação
dos grandes autores e artistas clássicos da antiguidade, mas
não como repetição ou reprodução do
que eles pensaram, escreveram ou fizeram, e sim como recriação
a partir dos procedimentos antigos. A erudição, uma das principais
características dos humanistas, não é acúmulo
de informações, mas uma atitude polêmica perante a
tradição (recusar a apropriação católica
da cultura antiga). Isto aparece com grande clareza nos historiadores que
procuram conhecer fontes primárias e documentos originais a fim
de elaborar uma história objetiva e patriótica, isto é,
uma história nacional que seja, por si mesma, a refutação
da legitimidade da dominação da Igreja Romana e do Império
Romano Germânico sobre os Estados Nacionais. A erudição
também serve, juntamente com a retórica, para um tipo muito
peculiar de imitação dos antigos: aquela que é feita
pelos escritores com a finalidade de criar uma língua nacional culta,
rica, bela e que substitua o imperialismo do latim. Assim, em todas as
esferas das atividades culturais pode-se perceber que a famosa "renascença
dos antigos" não tem uma finalidade nostálgica e sim polêmica
e criadora, que diz respeito ao presente e às suas questões.
2. Alguns aspectos do Renascimento,
da Reforma e da Contra-Reforma
Do lado do que denominamos Renascimento,
encontramos os seguintes elementos definidores da vida intelectual: 1)
surgimento de academias laicas e livres, paralelas às universidades
confessionais, nas quais imperavam as versões cristianizadas do
pensamento de Platão, Aristóteles, Plotino e dos Estóicos
e as discussões sobre as relações entre fé
e razão, formando clérigos e teólogos encarregados
da defesa das idéias eclesiásticas; as academias redescobrem
outras fontes do pensamento antigo, se interessam pela elaboração
de conhecimentos sem vínculos diretos com a teologia e a religião,
incentivam as ciências e as artes (primeiro, o classicismo e, depois
da Contra-Reforma, o maneirismo); 2) a preferência pelas discussões
em torno da clara separação entre fé e razão,
natureza e religião, política e Igreja. Considera-se que
os fenômenos naturais podem e devem ser explicados por eles mesmos,
sem recorrer à continua intervenção divina e sem submetê-los
aos dogmas cristãos (como, por exemplo, o geocentrismo, com a Terra
imóvel no centro do universo); defende-se a idéia de que
a observação, a experimentação, as hipóteses
lógico-racionais, os cálculos matemáticos e os princípios
geométricos são os instrumentos fundamentais para a compreensão
dos fenômenos naturais (Bruno, Copérnico, Leonardo da Vinci
sendo os expoentes dessa posição). Desenvolvem-se, assim,
tendências que a ortodoxia religiosa bloqueara durante a Idade Média,
isto é, o naturalismo (coisas e homens, enquanto seres naturais,
operam segundo princípios naturais e não por decretos divinos
providenciais e secretos); 3) interesse pela ciência ativa ou prática
em lugar do saber contemplativo, isto é, crença na capacidade
do conhecimento racional para transformar a realidade natural e política,
donde o interesse pelo desenvolvimento das técnicas (respondendo
a exigências intelectuais e econômicas da época, quando
o capitalismo pede instrumentos que sejam aumentadores da capacidade das
forças produtivas); 4) alteração da perspectiva da
fundamentação do saber, isto é, passagem da
visão teocêntrica (Deus como centro, principio, meio e fim
do real) para a naturalista e para a humanista. Aqui, duas grandes linhas
se desenvolvem: de um lado, a discussão sobre a essência da
alma humana como racional e passional, de sua força e de seus limites,
conduzindo àquilo que, mais tarde, seria conhecido como o Sujeito
do Conhecimento ou a Subjetividade, que, no Renascimento,
ainda se encontra mais próxima de uma "psicologia da alma" e de
uma moral, enquanto na filosofia moderna estará mais voltada pelo
que seria chamado de Epistemologia (dessa preocupação com
o homem, Nicolau de Cusa, Ficino, Erasmo e Montaigne serão os grandes
expoentes); e, de outro lado, a discussão em torno dos fundamentos
naturais e humanos da política. Nesta, três linhas principais
se desenvolvem. A primeira, vinda dos populistas e conciliaristas medievais
e da história patriótica e republicana das cidades italianas,
encontra seu ponto mais alto e controvertido em Maquiavel que, além
de desmontar as concepções clássicas e cristãs
sobre o "bom governante virtuoso" e de uma origem divina, ou natural ou
racional do poder, funda o poder na divisão originária da
sociedade entre os Grandes (que querem oprimir e comandar) e o Povo (que
não quer ser oprimido nem comandado), a Lei sendo a criação
simbólica da unidade social pela ação política
e pela lógica da ação (e não pela força,
como se costuma supor). Na segunda linha, a discussão se volta para
a crítica do presente pela elaboração de uma outra
sociedade possível-impossível, justa, livre, igualitária,
racional perfeita — a utopia, cujos expoentes são Morus e Campanella.
A terceira linha discute a política a partir dos conceito de direito
natural e direito civil (linha que irá predominar entre os modernos),
das causas das diferenças entre os regimes políticos e as
formas da soberania, sendo seus expoentes Pasquier, Bodin, Grócio.
Nas três linhas, encontramos a preocupação com a história,
seja como prova de que outra sociedade é possível, seja como
exame dos erros cometidos por outros regimes, seja como exemplo do que
pode ser imitado ou conservado.
Por seu turno, a Reforma destrói
a crença (concretamente ilusória, pois jamais existente)
da unidade da fé cristã, dos dogmas e cerimônias, e
sobretudo da autoridade religiosa: questiona-se a autoridade papal e episcopal,
questiona-se o privilégio de somente alguns poderem ler e interpretar
os livros Sagrados, questiona-se que Deus tenha investido o papado do direito
de ungir e coroar reis e imperadores, questionam-se dogmas e ritos (como
a missa e até mesmo o batismo). O mundo cristão europeu cinde-se
de alto a baixo em novas ortodoxias (luteranismo, calvinismo, anglicanismo,
puritanismo) e em novas heterodoxias (anabatistas, menonitas, quakers,
os "cristãos sem igreja"). As lutas religiosas não ocorrem
apenas entre católicos e reformados, mas também entre estes
últimos e particularmente entre eles e as pequenas seitas radicais
e libertárias que serão freqüentemente dizimadas, com
violência descomunal. Modifica-se a maneira de ler e interpretar
a Bíblia, modifica-se a relação entre religião
e política: todos devem ter o direito de ler o Livro Santo e nele
Deus não declarou que a monarquia é o melhor dos regimes
políticos. Dois resultados culturais decorrem dessa nova atitude:
por um lado, o desenvolvimento de escolas protestantes para alfabetização
dos fiéis, para que possam ler a Bíblia e escrever sobre
suas próprias experiências religiosas, divulgando a nova e
verdadeira fé (a panfletagem será uma das marcas características
da Reforma, que produziu uma população alfabetizada); por
outro lado, na fase inicial do protestantismo (que seria suplantada quando
algumas seitas triunfassem e se tornassem dominantes), a defesa da ideia
de comunidade, de república popular ou aristocrática e do
direito político à resistência, isto é, da desobediência
civil face ao papado e aos reis e imperadores católicos.
Enfim, a Contra-Reforma, cuja expressão
mais alta e mais eficaz será a Companhia de Jesus, define um novo
quadro para a vida intelectual: por um lado, para fazer frente à
escolaridade protestante, os jesuítas (mas não somente eles)
enfatizam a ação pedagógico-educativa (não
nos esqueçamos de Nóbrega e Anchieta ensinando índios
a ler e a escrever!), e, por outro lado, enfatizam o direito divino dos
reis, fortalecendo a tendência dos novos Estados Nacionais à
monarquia absoluta de direito divino. É no quadro da Contra-Reforma,
como renovação do catolicismo para combate ao protestantismo,
que a Inquisição toma novo impulso e se, durante a Idade
Média, os alvos privilegiados do inquisidor eram as feiticeiras
e os magos, além das heterodoxias tidas como heresias, agora o alvo
privilegiado do Santo Oficio serão os sábios: Giordano Bruno
é queimado como herege, Galileu é interrogado e censurado
pelo Santo Oficio, as obras dos filósofos e cientistas católicos
do século XVII passam primeiro pelo Santo Oficio antes de receberem
o direito à publicação e as obras dos pensadores protestantes
são sumariamente colocadas na lista das obras de leitura proibida
(o Index). A Contra-Reforma realizará, do lado católico,
o mesmo que a Reforma triunfante, do lado protestante: o controle da atividade
intelectual que o Renascimento liberara e que cultivara como liberdade
de pensamento e de expressão.
É no interior desse contexto
polêmico, frequentemente autoritário e violento que se
desenvolve a Filosofia Moderna do século XVII.
3. Características gerais
do saber no século XVII
A expressão "filosofia moderna
ou filosofia do século XVII" é uma abstração,
como já sugerimos ao mencionar a questão da cronologia. Mas
é também uma abstração se considerarmos as
várias filosofias que polemizaram entre si nesse período,
os filósofos concebendo a metafísica, a ciência da
Natureza, as técnicas, a moral e a política de maneiras muito
diferenciadas. No entanto, para quem olha de longe, é impossível
não reconhecer a existência de um campo de pensamento
e de um campo discursivo comuns a todos os pensadores modernos e
no interior dos quais suas semelhanças e diferenças se configuram.
É desse campo comum que falaremos aqui.
Convém não esquecermos
que a distinção entre filosofia e ciência é
muito recente (consolidou-se apenas nos meados do século XIX), de
modo que os pensadores do século XVII são considerados sábios
(e não intelectuais, noção que também é
muito recente) e não separam seus trabalhos científicos,
técnicos, metafísicos, políticos. Para eles, tudo
isso constitui a filosofia e cada sábio costuma ser um pesquisador
ou um conhecedor de todas as áreas de conhecimento, mesmo que se
dedique preferencialmente mais a umas do que a outras. Essa relação
entre as atividades levou o filósofo Merleau-Ponty a designar a
filosofia moderna como a época do Grande Racionalismo para
o qual as relações entre ciência da Natureza, metafísica,
ética, política, espírito e matéria, alma e
corpo, consciência e mundo exterior estavam articuladas porque fundadas
num mesmo princípio que vinculava internamente todas as dimensões
da realidade: a Substância Infinita, isto é, o conceito do
Ser Infinito ou Deus.
Das características gerais
do campo de pensamento e de discursos da Filosofia Moderna, destacaremos
os seguintes: o significado da nova ciência da Natureza, os conceitos
de causalidade e de substância, a ideia de método ou
de mathesis universalis, e a ideia de razão, explícita
ou implicitamente elaborada por tais pensadores.
3.1. A nova Ciência da Natureza
ou Filosofia Natural
Num nível superficial, pode-se
dizer que a nova Ciência da Natureza ou Filosofia Natural possui
três características 1) passagem da ciência especulativa
para a ativa, na continuidade do projeto renascentista de dominação
da Natureza e cuja fórmula se encontra em Francis Bacon: "Saber
é Poder"; 2) passagem da explicação qualitativa e
finalística dos naturais para a explicação quantitativa
e mecanicista; isto é, abandono das concepções aristotélico-medievais
sobre as diferenças qualitativas entre as coisas como fonte de explicação
de suas operações (leve, pesado, natural, artificial, grande,
pequeno, localizado no baixo ou no alto) e da ideia de que os fenômenos
naturais ocorrem porque causas finais ou finalidades os provocam a acontecer.
Tais concepções são substituídas por relações
mecânicas de causa e efeito segundo leis necessárias e universais,
válidas para todos os fenômenos independentemente das qualidades
que os diferenciam para nossos cinco sentidos (peso, cor, sabor, textura,
odor, tamanho) e sem qualquer finalidade, oculta ou manifesta; 3) conservação
da explicação finalística apenas no plano da metafísica:
a liberdade da vontade divina e humana e a inteligência divina e
humana, embora incomensuráveis, se realizam tendo em vista fins
(o filósofo Hobbes suprimirá boa parte das finalidades no
campo da moral, dando-lhe fisionomia mecanicista também, e o filósofo
Espinosa suprimirá a finalidade na metafísica e na ética,
criticando-a como superstição e ignorância das verdadeiras
causas das ações).
Todavia, como salienta o historiador
das idéias, Alexandre Koyré, essas características
são apenas efeitos de modificações mais profundas
na nova Ciência da Natureza e que são:
1) a destruição, vinda
do Renascimento, da ideia greco-romana e cristã de Cosmos,
isto é, do mundo como ordem fixa segundo hierarquias de perfeição,
dotado de centro e de limites conhecíveis, cíclico no tempo
e limitado no espaço. Em seu lugar, surge o Universo Infinito,
aberto no tempo e no espaço, sem começo, sem fim, sem limite
e que levará o filósofo Pascal à célebre fórmula
da "esfera cuja circunferência está em toda parte e o centro
em nenhuma". Não apenas o heliocentrismo é possível
a partir dessa ideia, mas com ela dois novos fenômenos ocorrem:
em primeiro lugar, a perda do centro, que levará os pensadores a
uma indagação que, de acordo com o historiador da filosofia
Michel Serres, é essencial e prévia à própria
possibilidade do conhecimento, qual seja, indagam se é possível
encontrar um outro centro, ou um ponto fixo a partir do qual seja
possível pensar e agir (os filósofos falam na busca do ponto
de Arquimedes para o pensamento); em segundo lugar, uma nova elaboração
do conceito de ordem e que, segundo Michel Foucault, será
a motivação principal na elaboração moderna
do método para conhecer (sem ordem não há conhecimento
possível, e a primeira coisa a ordenar será a própria
faculdade de conhecer);
2) a geometrização
do espaço. Este era, na física aristotélico-tomista,
um espaço topológico e topográfico (isto é,
constituído por lugares — topoi — que determinavam
a forma de um fenômeno natural, sua importância, seu sentido),
o mundo estando dividido em hierarquias de perfeição conforme
tais lugares. Agora, o espaço se torna neutro, homogêneo,
mensurável, calculável, sem hierarquias e sem valores, sem
qualidades. É essa a idéia que se exprime na famosa frase
de Galileu que abre a modernidade científico-filosófica:
"A filosofia está escrita neste vasto livro, constantemente aberto
diante de nossos olhos (quero dizer, o universo) e só podemos compreendê-lo
se primeiro aprendermos a conhecer a língua, os caracteres nos quais
está escrito. Ora, ele está escrito em linguagem matemática
e seus caracteres são o triângulo e o círculo e outras
figuras geométricas, sem as quais é impossível compreender
uma só palavra". Ou como dirá Espinoza, ao escrever sobre
os afetos e as paixões em sua Ética, declarando que
deles tratará como se estivesse escrevendo sobre linhas, superfícies,
volumes e figuras geométricas;
3) a mecânica como nova ciência
da Natureza, isto é, a idéia de que todos os fenômenos
naturais (as coisas não humanas e humanas) são corpos constituídos
por partículas dotadas de grandeza, figura e movimento determinados
e que seu conhecimento é o estabelecimento das leis necessárias
do movimento e do repouso que conservam ou modificam a grandeza e a figura
das coisas por nós percebidas porque conservam ou alteram a grandeza
e a figura das partículas. E a ideia de que estas leis são
mecânicas, isto é, leis de causa e efeito cujo modelo é
o movimento local (o contato direto entre partículas) e o movimento
à distância (isto é, a ação e a reação
dos corpos pela mediação de outros ou, questão controversa
que dividirá os sábios, pela ação do vácuo).
Fisiologia, anatomia, medicina, óptica, paixões, idéias,
astronomia, física, tudo será tratado segundo esse novo modelo
mecânico. E é a perfeita possibilidade de tudo conhecer por
essa via que permite a intervenção técnica sobre a
natureza física e humana e a construção dos instrumentos,
cujo ideal é autônomo e cujo modelo é o relógio.
3.2.
As ideias de substância e de causalidade
Enquanto o pensamento greco-romano
e o cristão admitiam a existência de uma pluralidade infinita
(ou indefinida) de substâncias, os modernos irão simplificar
enormemente tal conceito.
Substância é
toda realidade capaz de existir (ou de subsistir) em si e por si mesma.
Tudo que precisar de outro ser para existir será um modo ou um acidente
da substância. Na versão tradicional, mineral era uma substância,
vegetal era substância, animal, outra substância, espiritual,
uma outra. Mas não só isto, dependendo das filosofias, cada
mineral, cada vegetal, cada animal, cada espírito, era substância,
de tal maneira que haveria tantas substâncias quantos indivíduos.
Simplificadamente: a substância podia ser pensada como um gênero,
ou como uma espécie ou até como um indivíduo. E cada
qual teria seus modos ou acidentes e suas próprias causalidades.
Os modernos, especialmente após
Descartes, admitem que há apenas três substâncias: a
extensão (que é a matéria dos corpos, regida pelo
movimento e pelo repouso), o pensamento (que é a essência
das ideias e constitui as almas) e o infinito (isto é, a
substância divina). Essa alteração significa apenas
o seguinte: uma substância se define pelo seu atributo principal
que constitui sua essência (a extensão, isto é,
a matéria como figura, grandeza, movimento e repouso; o pensamento,
isto é, a ideia como inteligência e vontade; o infinito,
isto é, Deus como causa infinita e incriada).
Na verdade, os modernos não
concordarão com a tripartição de Descartes. Os materialistas,
por exemplo, dirão que há apenas extensão e infinito;
os espiritualistas, que há apenas pensamento e infinito.
E, nos dois extremos dessa discussão, estarão Espinosa, de
um lado, e Leibniz, de outro. Para Espinhosa existe uma e apenas
uma substância — a infinitamente infinita, isto é, Deus, com
infinitos atributos infinitos dos quais conhecemos dois, o pensamento e
a extensão (suprema heresia: Espinoza afirma que Deus é extenso),
todo o restante do universo são os modos singulares da única
substância. Para Leibniz, existem infinitas substâncias, cada
uma delas contendo em si mesma um dos dois grandes atributos — pensamento
(inteligência, vontade, desejo) ou extensão (figura, grandeza,
movimento e repouso). Essas substâncias se chamam mônadas
(unidade última e indivisível) e há apenas uma diferença
entre as mônadas — isto é, há a Mônada Infinita,
que é Deus, e há as mônadas criadas e finitas, isto
é, os seres existentes no universo, e que podem ser extensas ou
pensantes.
De qualquer maneira, o essencial
na questão da Substância definida pelo seu atributo principal
é que, de agora em diante, conhecer é conhecer apenas três
tipos de essências e suas operações fundamentais: a
matéria (geometrizada), a alma (intelecto, vontade e apetites) e
o infinito.
Esse conhecimento se fará
pelo conceito de causalidade. Conhecer é conhecer a causa
da essência, da existência e das ações e reações
de um ser. Um conhecimento será verdadeiro apenas e somente quando
oferecer essas causas. Evidentemente, os filósofos discordarão
quanto ao que entendem por causa e causalidade, discordarão quanto
à determinação de uma realidade como sendo causa ou
como sendo efeito, discordarão quanto ao número de causas,
discordarão quanto aos procedimentos intelectuais que permitem conhecer
as causas e, portanto, discordarão quanto à definição
da própria noção de verdade, uma vez que esta
depende do que se entende por causa e por operação causal.
Mas todos, sem exceção, consideram que um conhecimento só
pode aspirar à verdade se for conhecimento das causas, sejam elas
quais forem e seja como for a maneira como operem. O importante é
notar que fizeram a verdade, a inteligibilidade e o pensamento dependerem
da explicação causal e afastaram a explicação
meramente descritiva ou interpretativa. A síntese desse ideal encontra-se
em Espinosa e em Leibniz. Afirma Espinoza que o conhecimento verdadeiro
é aquele que nos diz como uma realidade foi produzida, isto é,
o conhecimento verdadeiro é o que alcança a gênese
necessária de uma realidade. Leibniz estabelece o chamado principio
da Razão Suficiente, segundo o qual nada existe que não
tenha uma causa e que não possa ser conhecida, ou, como ficou conhecido:
"Nihil sine ratione", nada é sem causa.
Com relação ao conceito
de causalidade, é necessário fazermos três observações:
1) diferentemente dos gregos, romanos e medievais (que admitiam quatro
causas — material, formal, eficiente ou motriz e final), os modernos admitem
apenas duas: a eficiente (a causalidade propriamente dita como relação
entre uma causa e seu efeito direto) e a final, para os seres dotados de
vontade livre, pois esta sempre age tendo em vista fins (Deus e homens).
Apenas Espinosa recusa a finalidade, considerando a causa final um produto
da imaginação e uma ilusão; 2) a causa eficiente exige
que causa e efeito sejam de mesma natureza (de mesma substância;
ou de mesmo modo, no caso de Espinoza), de sorte que causas corporais não
podem produzir efeitos anímicos e vice-versa. Ora, os humanos são
criaturas mistas (possuem corpo e alma) e é preciso explicar causalmente
as relações entre ambos se se quiser conhecer o homem e sobretudo
o que os modernos chamam de ação e paixão. As soluções
do problema serão variadas. Assim, por exemplo, Descartes imagina
uma glândula — a glândula pineal, na base do pescoço
— que faria a comunicação entre as duas substâncias
do composto humano; Espinosa e Leibniz consideram a posição
cartesiana absurda, e para ambos a relação entre alma e corpo
não é "causal" no sentido de ação do corpo
sobre a alma ou vice-versa, mas uma relação de expressão,
isto é, o que se passa num deles se exprime de maneira diferente
no outro e vice-versa; os materialistas resolvem o problema considerando
que os efeitos anímicos são uma modalidade dos comportamentos
corporais, pois não haveria uma substância espiritual, a não
ser Deus; os espiritualistas vão na direção contrária
(como Malebranche), considerando os corpos e os acontecimentos corporais
como aparência sensível de realidades puramente espirituais;
3) o conceito de causa possui três sentidos simultâneos e inseparáveis
e não apenas um; esses três sentidos simultâneos constituem
a causalidade como princípio de plena inteligibilidade do real:
a) a causa é algo real que produz um efeito real (causa
e efeito são entes, seres, coisas); b) a causa é a razão
que explica a essência e a existência de alguma coisa, é
sua explicação verdadeira e sua inteligibilidade; c) a causa
é o nexo lógico que articula e vincula necessariamente
uma realidade a uma outra, tornando possível não só
sua existência, mas também seu conhecimento. Conhecer pela
causa é, pois, conhecer entes, razões e vínculos necessários.
3.3. A ideia de método
ou de mathesis universalis
Os filósofos modernos enfrentam
três grandes problemas no tocante ao conhecimento verdadeiro:
1) tendo o Cosmos, sua ordem, sua
hierarquia e seu centro desaparecido, o homem, como ser pensante, não
encontra imediatamente nas coisas percebidas a verdade, a origem e o sentido
do real, pois as coisas são percebidas em suas qualidades sensoriais
e o mundo parece ser finito e ordenado por valores e perfeições
que a nova ciência da Natureza revelou serem ilusórios;
2) o conceito de causalidade faz
uma exigência teórica que, se não for respeitada, impede
que a verdade seja conhecida. Essa exigência é de que as
relações causais só se estabelecem entre coisas de
mesma substância (a extensão, ou a matéria, ou
os corpos, dependendo da terminologia de cada sábio, só produz
efeitos extensos, materiais, corporais; o pensamento, a alma, as ideias,
também dependendo da terminologia de cada filósofo, só
produzem efeitos pensantes, anímicos, ideativos; o finito só
produz efeitos finitos; o infinito, única exceção,
produz efeitos finitos e infinitos, mas não pode ser produzido por
uma causa finita). Ora, como já o dissemos, os humanos são
compostos de duas substâncias (ou de modos diferentes
da mesma substância, no caso de Espinosa) que, no plano causal, não
podem causar-se um ao outro. Ora, conhecer é uma atividade da substância
pensante ou do modo pensante, mas o conhecido pode tanto ser um aspecto
do pensante quanto os corpos, as coisas ou os modos extensos. E, neste
caso, a causalidade não pode operar, pois o que se passa na extensão
não pode causar efeitos no pensamento e vice-versa. A solução
encontrada por todos os filósofos (com variantes, novamente, e com
exceção de Espinoza) consiste em considerar o conhecimento
uma Representação, isto é, que a inteligência
não afeta nem é afetada pelos corpos, mas pelas ideias
deles, havendo assim a homogeneidade exigida pela causalidade;
3) mas a representação
cria um novo problema: como saber se as idéias representadas correspondem
verdadeiramente às coisas representadas? Como saber se a ideia
é adequada ao seu ideado? Para solucionar esta dificuldade nasce
o método.
A noção de representação
significa que aquele que conhece — o Sujeito do Conhecimento — está
sozinho, rodeado por coisas cuja verdade ele não pode encontrar
imediatamente, pois percebe coisas, mas deve conhecer Objetos do Conhecimento,
isto é, as ideias verdadeiras ou os conceitos dessas coisas
percebidas. Precisa de um instrumento que lhe permita três
atividades: 1) representar corretamente as coisas, isto é, alcançar
suas causas sem risco de erro (para os espiritualistas, os erros virão
dos sentidos ou do corpo; para os materialistas, os erros virão
das abstrações indevidas feitas pela inteligência);
2) controlar cada um dos passos efetuados, pois a perda de controle de
uma das operações intelectuais pode provocar o erro no final
do percurso, que, por isso, deve ser controlado passo por passo; 3) permitir
que se possa deduzir ou inferir de algo já conhecido com certeza
o conhecimento de algo ainda desconhecido, isto é, o instrumento
deve permitir o progresso dos conhecimentos verdadeiros oferecendo recursos
seguros para que se possa passar do conhecido ao desconhecido. A função
do método é de preencher esses três requisitos. Por
essa razão, nenhum dos filósofos modernos deixa de escrever
um tratado sobre o método.
No século XVII, a palavra
método (do grego: caminho certo, correto, seguro) tem um
sentido vago e um sentido preciso. Sentido vago, porque todos os filósofos
possuem um método ou o seu método, havendo
tantos métodos quantos filósofos. Sentido preciso, porque
o bom método é aquele que permite conhecer verdadeiramente
o maior número de coisas com o menor número e regras. Quanto
maiores a generalidades e a simplicidade do método, quanto mais
puder ser aplicado aos mais diferentes setores do conhecimento, melhor
será ele.
O método é sempre considerado
matemático. Isto não quer dizer que se usa a aritmética,
a álgebra, a geometria para o conhecimento de todas as realidades,
e sim que o método procura o ideal matemático, isto
é, ser uma mathesis universalis.
Isto significa duas coisas: 1) que
a matemática é tomada no sentido grego da expressão
ta mathema, isto é, conhecimento completo, perfeito e inteiramente
dominado pela inteligência (aritmética, geometria, álgebra
são matemáticas, por isso, isto é, porque dominam
completa e intelectualmente seus objetos); 2) que o método possui
dois elementos fundamentais de todo conhecimento matemático: a ordem
e a medida.
Vimos que, no Renascimento, o conhecimento
operava com a noção de Semelhança, era descritivo
e interpretativo. A diferença entre os renascentistas e os modernos
consiste no fato de que estes últimos criticam a Semelhança,
considerando-a causa dos erros e incapaz de alcançar a essência
das coisas. Conhecer pela causa significa que a inteligência é
capaz de discernir a identidade e a diferença
no nível da essência invisível das coisas. A ordem
e a medida têm a função de produzir esse discernimento
e por isso são o núcleo do método e da mathesis.
Conhecer é relacionar.
Relacionar é estabelecer um nexo causal. Estabelecer um nexo
causal é determinar quais as identidades e quais as diferenças
entre os seres (coisas, ideias, corpos, afetos, etc.). A medida
oferece o critério para essa identidade e essa diferença.
Assim, por exemplo, a medida permitirá que não se estabeleça
uma relação causal entre realidades heterogêneas quanto
à substância. Ela analisa, isto é, decompõe
um todo em partes e estabelece qual o elemento que serve de unificador
para essas partes (a "grandeza" comum a todas elas). A ordem é
o conhecimento do encadeamento interno e necessário entre os termos
que foram medidos, isto é, estabelece qual o termo que se relaciona
com outro e em qual sequência necessária, de sorte que
ela estabelece uma série ordenada, sintetiza o que
foi analisado pela medida e permite passar do conhecido ao desconhecido.
A ordem é essencial ao método
por três motivos: 1) porque os modernos consideram que a primeira
verdade de uma série é conhecida por uma intuição
evidente, a partir da qual será colocada a medida e esta
depende da seriarão dos termos feita pela ordem; 2) porque
os conhecimentos de totalidades complexas são conhecimentos de séries
diferentes, cujas relações só podem ser estabelecidas
se cada série estiver corretamente ordenada; 3) porque a ordem permite
a relação entre um primeiro termo e um último cuja
medida pode não ser a mesma (são heterogêneos ou incomensuráveis),
mas a relação pode ser feita porque a ordenação
foi fazendo aparecer entre um termo e outro uma medida nova que encadeia
o segundo ao terceiro, este ao quarto e assim por diante.
Um exemplo deste último e
mais importante procedimento. Na filosofia de Descartes, não haveria
como estabelecer relação causal entre a alma finita humana,
Deus infinito e o mundo extenso, já que são três substâncias
diferentes. Aplicando a medida e a ordem, Descartes estabelece o que chama
de cadeia de razões (nexos causais e lógicos) do seguinte
tipo: a alma pensa e ao pensar tem uma idéia de que ela própria
não pode ser a causa, a idéia de Deus; isto é, a alma
finita não pode ser causa de uma ideia infinita. Sendo, porém,
Deus uma ideia, pode perfeitamente estar em nossa alma e
pode causá-la em nós, porque o intelecto divino age sobre
o nosso por meio das ideias verdadeiras. Ora, a ideia
de Deus é a ideia de um Ser Perfeito, que seria imperfeito
se não existisse, portanto, a ideia presente em nossa
inteligência, causada pela inteligência de Deus, é a ideia de um ser que só será Deus se existir.
Nós não podemos fazer Deus existir, mas a idéia de
Deus nos revela que ele existe. Passamos, assim, da idéia ao ser.
Ora, esse ser é perfeito, e se nos faz ter ideias das coisas
exteriores através de nossos sentidos, é porque nos deu um
corpo e criou outros corpos que constituem o mundo extenso. Passamos, assim,
do ser de Deus à ideia de nosso corpo e às ideias
dos corpos exteriores, o que não poderia ser feito sem a ordem,
pois sem ela não poderíamos passar de nossa alma a Deus e
dele ao nosso corpo nem aos corpos exteriores. A medida é a ideia
e a ordem da seqüência causal dessas ideias até
chegar a corpos.
O método, ciência universal
da ordem e da medida, pode ser analítico ou sintético. Na
análise, vai-se das partes ao todo ou do particular ao universal
(é o método preferido por Descartes e Locke); na síntese,
vai-se do todo às partes ou do universal ao particular (é
o método preferido por Espinoza); ou uma combinação
de ambos, conforme as necessidades próprias do objeto de estudo
(como faz Leibniz). Em qualquer dos casos, realiza-se pela ordem e pela
medida, mas é considerado dedutivo pelos racionalistas intelectualistas
(que partem das ideias para as sensações) e indutivo
pelos racionalistas empiristas (que partem das sensações
para as ideias). Essa diferença repercute no conceito de
intuição, que é considerado por todos como
o ponto de partida da cadeia dedutiva ou da cadeia indutiva: no primeiro
caso, a intuição é uma visão puramente intelectual
de uma ideia verdadeira; no segundo caso, a intuição
é sensível, isto é, visão ou sensação
evidente de alguma coisa que levará à sua ideia.
4. A idéia moderna da Razão
Em seu livro História da
Filosofia, Hegel declara que a filosofia moderna é o nascimento
da Filosofia propriamente dita porque nela, pela primeira vez, os filósofos
afirmam:
1) que a filosofia é independente
e não se submete a nenhuma autoridade que não seja a própria
razão como faculdade plena de conhecimento. Isto é, os modernos
são os primeiros a demonstrar que o conhecimento verdadeiro só
pode nascer do trabalho interior realizado pela razão, graças
a seu próprio esforço, sem aceitar dogmas religiosos, preconceitos
sociais, censuras políticas e os dados imediatos fornecidos pelos
sentidos. Só a razão conhece e somente ela pode julgar-se
a si mesma;
2) que a filosofia moderna realiza
a primeira descoberta da Subjetividade propriamente dita porque nela o
primeiro ato de conhecimento, do qual dependerão todos os outros,
é a Reflexão ou a Consciência de Si Reflexiva.
Isto é, os modernos partem da consciência da consciência,
da consciência do ato de ser consciente, da volta da consciência
sobre si mesma para reconhecer-se como sujeito e objeto do conhecimento
e como condição da verdade. A consciência é
para si mesma o primeiro objeto do conhecimento, ou o conhecimento de que
é capacidade de e para conhecer;
3) que a filosofia moderna é
a primeira a reconhecer que, sendo todos os seres humanos seres conscientes
e racionais, todos têm igualmente o direito ao pensamento e à
verdade. Segundo Hegel, essa afirmação do direito ao pensamento,
unida à idéia de liberdade da razão para julgar-se
a si mesma, portanto, o igualitarismo intelectual e a recusa de toda censura
sobre o pensamento e a palavra, seria a realização filosófica
de um principio nascido com o protestantismo e que este, enquanto mera
religião, não poderia cumprir precisando da filosofia para
realizar-se: o princípio da individualidade como subjetividade livre
que se relaciona livremente com o infinito e com a verdade.
A razão, o pensamento, a capacidade
da consciência para conhecer por si mesma a realidade natural e espiritual,
o visível e o invisível, os seres humanos, a ação
moral e política, chama-se Luz Natural. Embora os modernos
se diferenciem quanto à Luz Natural (para alguns, por exemplo, a
razão traz inatamente não só a possibilidade para
o conhecimento verdadeiro, mas até mesmo as idéias, que seriam
inatas; para outros, nossa consciência é como uma folha em
branco na qual tudo será impresso pelas sensações
e pela experiência, nada possuindo de inato), o essencial é
que a Luz Natural significa a capacidade de autoiluminação
do pensamento, uma faculdade inteiramente natural de conhecimento que alcança
a verdade sem necessidade da Revelação ou da Luz Sobrenatural
(ainda que alguns filósofos, como Pascal, Leibniz ou Malebranche,
considerem que certas verdades só podem ser alcançadas pela
Luz Natural se esta for auxiliada pela luz da Graça Divina).
A primeira intuição
evidente, verdade indubitável de onde partirá toda a filosofia
moderna, concentra-se na célebre formulação de Descartes:
"Penso, logo existo" (Cogito, ergo sum). O pensamento consciente
de si como "Força Nativa" (a expressão é de Espinosa),
capaz de oferecer a si mesmo um método e de intervir na realidade
natural e política para modificá-la, eis o ponto fixo encontrado
pelos modernos.
COMENTÁRIO:
Gosto de Filosofia e cada vez mais percebo que pouco sei de Filosofia,
que tenho muito a aprender, estou iniciando uma especialização em filosofia, na busca de maiores conhecimentos.
Particularmente, sou fã de Marilena Chaui,
Filósofa moderna, com pensamentos e ideais avançadas. É uma Filósofa e
Historiadora de filosofia brasileira.
É filha do jornalista Nicolau Alberto Chaui, de origem árabe, e
da professora Laura de Souza Chaui. Foi casada com o jornalista José Augusto de
Mattos Berlinck (1938),
com quem teve dois filhos - José Guilherme e Luciana. Atualmente é casada com Michael
Hall, historiador
e professor da Unicamp.
Professora titular de Filosofia Política e História da Filosofia
Moderna da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH-USP), é mestre (1967,
com Merleau-Ponty e a crítica do humanismo,
sob a orientação do professor Bento Prado de Almeida Ferraz Júnior), doutora (1971, com Introdução
à leitura de Espinosa, sob a orientação da professora Gilda Rocha de Mello e Souza) e livre
docente de Filosofia (1977, com A nervura do real: Espinosa e a questão da
liberdade) pela USP.
Além de extensa produção acadêmica, Marilena também publicou livros
paradidáticos de Filosofia, voltados sobretudo para o público jovem ou não
especializado.
Seu livro O que é Ideologia (Ed. Brasiliense, Coleção Primeiros
Passos) tornou-se um best-seller e vendeu mais de cem mil exemplares,
bastante acima da média de vendas dos livros no Brasil.
Foi Secretária Municipal de Cultura de São Paulo, de 1989 a 1992, durante a
administração de Luiza Erundina. (1988-1992)...
ALGUNS LIVROS QUE CONHEÇO:
SE VOCÊ GOSTA DE FILOSOFIA, VALE A PENA LER MARILENA CHAUI E
OUTROS AUTORES RENOMADOS.
Professora, admiro quem gosta de Filosofia, acho muito difícil, complexa... Estudei Chaui na graduação de Pedagogia, realmente seus livros são muitos bons. Parabéns pelas postagens. Madalena-PE.
ResponderExcluirOi Madalena que bom visistas o meu blog obrigada pelo comentário! Filosofia é um pouco complexa realmente, mas quando pasamos a conhecer um pouco sobre ela nos apaixonamos, esse talvez seja o meu pensamento, como diz Chaui:"A filosofia é independente e não se submete a nenhuma autoridade que não seja a própria razão como faculdade plena de conhecimento". a Filosofia nos leva a refletir, a questionar a tentar compreender os problemaspela raiz...Quem sabe por isso eu goste de Filosofia, embora saiba muito pouco e acho que você gosta um pouca também amiga.Obrigada pela visita volte sempre. Abraços.
ExcluirAlguns trabalham, outros pensam!Se todos pensassem...
ResponderExcluir