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Divulgação da Cultura, da Arte e da Literatura Brasileiras
charlesmallarme.wordpress.com/2008/11/.../chico-buarque-de-holan...
Sou professora de Sociologia
e pesquisando com meus alunos sobre o período do Regime Militar, artistas
exilados, músicas censuradas e outros acontecimentos culturais da época, nos chamou a atenção para este artigo porque
faz alusão reflexiva . MPB: Chico Buarque; música e
política; regime militar: aspectos culturais.
Como o artigo é rico em conhecimentos para refletir
com alunos do Ensino Médio, postarei no
meu Blog, caso a autoria rejeite, comunique de alguma forma, que será retirada
a postagem.
Desde já os
meus agradecimentos.
Este artigo analisa a relação entre o ser social e
o tempo histórico em cinco canções compostas por Chico Buarque de Hollanda
durante os anos 70, em plena vigência do regime militar no Brasil. Nossa
perspectiva é a de que a obra deste compositor revela uma singular articulação
entre aquelas duas categorias, expressando várias formas de consciência crítica
em relação à experiência da opressão e do esvaziamento do espaço público.
Procuramos demonstrar, a partir dos exemplos musicais propostos, que Chico
Buarque fez da relação tensa entre ser e tempo num contexto autoritário, a base
de sua matéria poética e, desta forma, imprimiu um sentido político sui-generis
para a sua obra, indo além dos limites da canção de protesto tradicional.
PALAVRAS-CHAVE: MPB: Chico Buarque; música e política; regime militar: aspectos
culturais.
ABSTRACT
This article analyses the
connection between social being and historical experience focusing five songs
composed by Chico Buarque de Hollanda in the 1970s, during Brazilian military
regime. I argue that the songs of Chico Buarque express many forms of critical
conscience about authoritarian experience and the closing of public sphere. In
my point of view, Chico’s poetical matter is precisely the tension relationship
of being and time and, in that sense, overcame the traditional subjects of the
protest songs.
KEYWORDS: Brazilian
popular music: Chico Buarque de Hollanda; music and politics; Brazilian
military regime: cultural aspects.
O poema remete ao tempo, não apenas por aquilo que
fala, mas também pela estrutura, pois fazer poemas é organizar palavras no
tempo. A matéria e estrutura poética (fonema, palavra, verso, métrica, rima),
organizadas conforme um determinado ritmo, remetem ao tempo como categoria
fundamental do poema, formando e reformando a consciência do ser no tempo (seu tempo, outro tempo, novo tempo, não-tempo).
Assim, Alfredo Bosi discutiu as relações entre o ser e o tempo na poesia,2 tendo em
vista a perspectiva da resistência contra a opressão vigente. Para ele, o ser,
filosoficamente falando, se define pela consciência e, portanto, pela poesia. A
consciência, por sua vez, implica a consciência do tempo. Por uma associação
lógica, conclui-se que o poema remete ao tempo.
Toda esta reflexão, nascida durante a ditadura
militar brasileira, acabava levando o autor a uma relação necessária entre
poesia e resistência (política, cultural, existencial):
Diante da pseudototalidade forjada pela ideologia,
a poesia deverá ser feita por todos, não por um (…). Essa “ser feita por todos”
não pode se realizar materialmente, na forma de criação grupal, já que as
relações sociais não são comunitárias. Mas acabou fazendo-se de algum modo,
como produção de sentido contra-ideológico, válida para muitos3 .
A resistência na forma de poema, para Bosi,
apresentava muitas faces: nostálgica, crítica ou utópica. Esta tipologia
inspiraria um dos primeiros trabalhos sobre a relação entre poesia, história e
política na obra de Chico Buarque de Hollanda, escrito por Adélia Meneses.4 Para a
autora, a obra de Chico Buarque poderia ser divida em duas vertentes:
- lirismo nostálgico — ontem — tempo mítico;
- canções da repressão — assume o tempo histórico, seu tempo.
Imperativo e não escolha. O poema não apenas expressa a semântica da
repressão, mas também a sintaxe da repressão, pois a censura e repressão
introjetadas tornam-se estruturais nas canções desta época.
Nesta segunda fase, Chico operaria em duas
vertentes: utópica, cantando o amanhã libertado de opressão e crítica, o hoje
opressivo a ser denunciado. Assim, a autora tentava explicar uma das sensações
mais fortes na experiência de audição das canções de Chico Buarque entre os
anos 60 e 70, enfatizando o tempo como a matéria central da sua poética, em
dois níveis: o tempo que dilui as experiências do ser, tempo da nostalgia, tema
recorrente sobretudo no primeiro momento da obra chicobuarquiana (1966-1970); e
o tempo que modifica o ser (e o mundo), o tempo da utopia.
Heloisa Starling vê na obra de Chico Buarque um
“caráter fortemente artesanal de uma obra preocupada, especialmente, em
reinvestir a palavra da plenitude de suas potencialidades, não importando no
caso, o gênero ou a forma utilizada”.5 Segundo
ela, Chico potencializa um traço específico da canção popular brasileira:
Sua força narrativa, vale dizer, a prioridade dada
pela canção a uma forma de escritura do tempo que concentra, em si, de maneira
paradigmática, os paradoxos característicos da nossa modernidade — o
reconhecimento do fim das formas seculares de compartilhamento da palavra
transmitida de pai para filho e a reafirmação da necessidade política e ética
de uma outra escritura da história capaz de extorquir do fluxo do tempo as
formas e os contornos arruinados de eventos do passado.6
O “seresteiro, poeta, trovador”, como o próprio
compositor se define em uma de suas canções, seria um “entre-lugar construído
pela articulação entre a tradição letrada, tradição escrita e a tradição oral
da poesia cantada no País.”7 Starling
também sublinha a importância do tempo como matéria poética do compositor.
Assim, Chico Buarque faz
aflorar no tempo os sons do que foi abandonado,
eclipsado, anulado na experiência nacional brasileira — e, ainda assim, está
lá, uma espécie de sons que se encontram perdidos na escuridão do passado, sons
que libertam os homens de seus hábitos presentes e desamarram as correntes que prendem
o futuro.8
Dentro desta tradição de análise, vamos propor
outras considerações para analisar a relação entre o ser e o tempo na obra
chicobuarquiana, enfatizando as chamadas canções de repressão (1971/1978). Como
hipótese central, sublinhamos que esta fase da obra de Chico Buarque é marcada
pela tensão básica entre não-ser (entendido como a produção do silêncio e
diluição da atuação crítica produzidos pela repressão) — entidade
fantasmagorizada no não-tempo da história (a “noite” como imagem-síntese da
ditadura, tempo de imobilidade e medo) — versus poesia e música (suas antíteses). O simples
ato de cantar, potencializando o ritmo e a melodia das frases poéticas,
redefine não apenas o sentido convencional das palavras, mas sua expressividade
latente e sutil, podendo desencadear inúmeras reações no ouvinte,
independentemente do conteúdo da letra veicular qualquer tipo de “protesto” político.
Chico, dessa maneira, adensava a “rede de recados” contra a ditadura, tal como
foi sugerida por José Miguel Wisnik.9
Contra a repressão e a censura, um dos recursos,
não apenas de Chico, mas de vários compositores, era trabalhar a poética do ser
e do tempo e suas antíteses, produzidas pela experiência da repressão, a saber:
não-ser (silêncio-censura) e não-tempo (ditadura-exílio-imobilismo político).
Neste sentido, mais do que um compositor contrário à ditadura, Chico foi um
cronista da dramática modernização brasileira, potencializada pela própria
ditadura. O progresso técnico que, mesmo benéfico, atropela todos os sonhos e
fantasias, tornava-se mais cruel quando imposto a partir de um modelo político
autoritário e excludente.
Antes de analisar algumas canções, vamos discutir
um pouco mais o lugar que Chico Buarque ocupava na cultura brasileira dos anos
70. Surge aqui uma questão fundamental: por que Chico teria se transformado em
uma unanimidade nacional, se tão perseguido pelo regime militar? Não basta, na
nossa perspectiva, a resposta básica de que, justamente por ser perseguido,
tornou-se um paladino da resistência. Isto responde em parte ao problema. Em
primeiro lugar, arriscamos dizer que sua popularidade estendia-se para além do
sucesso junto ao público-padrão idealizado pela memória como o ouvinte de MPB
por excelência (“jovem-intelectual-classe média-estudante-esquerdista”). Parece
haver, nas canções de Chico Buarque, algum elemento que conseguia expressar um
sentido de resistência e uma nova proposição acerca da relação ser/tempo que ia
além da instrumentalidade política imediata, típica das canções de protesto
contra o regime.
Havia também um outro elemento estrutural
explicativo, que ajuda a entender o lugar social do compositor. Chico era um
dos nomes mais valorizados pela indústria fonográfica, e sua função de paladino
contra a ditadura era valorizada por essa mesma indústria, embora o jogo fosse
muito perigoso.10 A tensão
de veicular canções dentro da indústria fonográfica, altamente capitalizada, e
poder exercitar sua liberdade criativa causavam-lhe uma estranha situação,
ainda pouco estudada: enquanto a faceta cancionista de Chico Buarque cumpria
seu papel de vendedor de cultura, sua faceta dramaturgo e escritor tentava
desenvolver projetos mais autorais e ousados, sem as amarras do grande mercado
ou da vigilância mais detalhada da censura. Lembramos que além de dramaturgo,
autor de Roda viva,
Calabar e Gota D’água, ainda nos anos 70 Chico Buarque iniciou sua
carreira de escritor, com o livro Fazenda modelo (1974).
Voltemos às canções. Não obstante compartilharmos
da tipologia da poética política de Chico Buarque, proposta por Adélia Meneses
(nostalgia / crítica / utopia), sublinhamos que as três dimensões do tempo
correspondente — ontem — hoje — amanhã — não se anulavam, mas faziam parte da
estilhaçada identidade do ser no tempo (no caso, o ser social em questão era
materializado pelo cidadão brasileiro no contexto autoritário dos anos 70).
Suas canções não apenas denunciavam o regime militar, mas os efeitos da violência
e da repressão sobre as consciências. Neste sentido, não se tratava de fazer
uma música de protesto, no sentido estrito da exortação a uma ação política
efetiva e prática, mas afirmar uma experiência sóciocultural, ainda que fugaz,
de liberdade e “promessa de felicidade” que durava na exata medida da própria
experiência da canção.11 Muito da
melancolia presente nas letras das suas canções provém da percepção de que — a
canção — não somente promessa, mas estado de felicidade, ao ocasionar o breve
reencontro entre o ser e o tempo é, no fundo, finita e impotente contra o mundo
real. Mas o próprio compositor nos responde a este dilema: “é melhor sofrer em
dó menor, do que sofrer calado”.
Tanto o cancionista quanto o público querem se
agarrar ao objeto fugaz a canção resultando desta experiência breve a
melancolia, que não é apatia e indiferença diante do mundo, mas, como dizia
Walter Benjamin, um estado potencialmente crítico produzido pelo mal-estar da
modernidade.12 Só aquele
ser que se recusa a esquecer, a aceitar o presente eterno e sem qualidade,
quando “tudo que é sólido se desmancha”, pode construir o futuro.
Com base neste conjunto de proposições em torno da
relação ser/tempo vamos analisar a matéria poético-musical de cinco canções de
Chico.
CONSTRUÇÃO
Numa associação livre com a obra clássica de
Machado de Assis, poderíamos definir a música Construção como
as “memórias póstumas de um operário”. Composta e gravada no início dos anos
70, esta canção deu nome ao álbum, lançado em pleno refluxo dos sonhos
libertários da década anterior, radicalizando a relação “não-tempo/não ser”
como matéria poética. O operário desumanizado da construção, vítima da
monotonia, do mecanicismo dos movimentos e da afetividade travada, transforma-se
num pacote bêbado, interrompendo o tráfego, categoria que poderia representar a
passagem do tempo sem qualidade ou utopia. Cimento e lágrima (matéria bruta e
matéria tênue a um só tempo).
Nesta canção, Chico atualiza e dialoga com o seu
primeiro grande sucesso, revendo o “pedro pedreiro” que já não espera mais
nada. Em Construção não há nostalgia nem utopia. O operário sabe que o seu
tempo chegou, não como libertação coletiva, mas como tragédia pessoal. O
primeiro conjunto de estrofes, cantadas numa levada de samba triste, nos revela
a figura trágica e autômata do ser, perturbada porém por sinais de uma explosão
existencial iminente que se configura. Contra o “desenho lógico” que
auto-encerra o ser autômato, restam a loucura e a embriaguez que lhe devolvem a
humanidade, ainda que de maneira cruel:
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
O desenho, ao se transformar em mágico, sugere o
arrebatamento de uma não-consciência, estado próximo da morte, que num
não-tempo (o tempo da ditadura) é simulacro de êxtase e liberdade. A
dramaticidade patética implode o cotidiano regrado, mas, na verdade, não leva a
nenhuma liberdade. Fecha-se assim o dia do operário que, agonizante, interrompe
o “tempo vazio e homogêneo”:
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Na segunda parte, paralelamente ao crescendo da
orquestra,13 cujos
naipes de metais e cordas acentuam progressivamente o tom dramático da canção,
o ser retorna num exercício de combinatório poético, com as últimas palavras de
cada verso funcionando como tijolos desenhando um quadro cada vez menos lógico.
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
A morte extática do operário perde o tom de
dramaticidade, beirando o limite do patético. O paroxismo entre o êxtase de uma
liberdade fugaz, vivida como simulacro de grandeza e felicidade
(príncipe/máximo/máquina/próximo/música/sábado), e a morte agônica e
insignificante (pacote tímido/passeio náufrago/ atrapalhando o público), se
intensifica:
Sentou pra descansar como se fosse um
príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Na última estrofe o combinatório das últimas
palavras de cada verso realiza a implosão de qualquer sentido lógico do poema,
ao mesmo tempo em que é mais reveladora do seu “desenho mágico” e do seu
sentido mais propriamente político. O problema do ser retorna mais uma vez,
adensado na sua antiexperiência pela fragilidade das próprias estruturas da
realidade (“paredes flácidas”). Todas as quatro paredes sólidas do edifício
parecem ruir junto com o operário. O ser ao negar-se, e virtualmente tornar-se
não-ser através da morte, consegue no máximo “atrapalhar” (verbo reiterado nos
últimos versos de cada estrofe) o cotidiano regrado de uma sociedade
automatizada. No breve tempo/espaço do delírio e da queda, no entanto, ele toma
para si sua própria humanidade.
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado
O tempo em Construção se manifesta em duas dimensões: em primeiro
lugar, como iminência, traduzida pela decisão do operário que decide romper o
cotidiano (não-tempo) pelo delírio e pela morte; em segundo lugar, o tempo se
manifesta como o breve espaço de liberdade entre a decisão de “sentar pra
descançar”, seguida do êxtase da loucura e arrebatamento da queda. Toda a
densidade do ser acumulada ao longo dos versos, traduzidos numa consciência
trágica da própria condição, é bruscamente estancada quando o “pacote flácido/
tímido/bêbado” chega ao solo.
FADO TROPICAL
A canção Fado tropical fazia parte da peça Calabar, de 1973, e junto
com as outras músicas foi proibida.14 A
matéria, que era trágica em Construção, ganha agora um tom falsamente épico. Falsamente,
pois Chico realiza uma estratégia de esvaziamento do discurso histórico épico e
ufanista, fazendo surgir poeticamente um tempo histórico enviesado, habitado
por ser nacional enviesado: “Brasil, imenso Portugal”. A ditadura brasileira e
a ditadura salazarista, pródigas em discursos ufanistas, são trabalhadas pela
paráfrase crítica. A voz que fala pelo poema assume o discurso do colonizador
que se confunde com a própria natureza brasileira, por sua vez, objeto
histórico de ideologização nos discursos do poder:
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
No trecho recitado, o discurso do ser enviesado, na
medida em que na verdade é um não-ser, posto que colonizado, se apropria da
auto-imagem sentimentalista. Mas, ao mesmo tempo, revela a consciência cínica
da sua natureza ideológica:
Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose
[de lirismo...(além dasífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em
[torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...
Em seguida, novamente a natureza brasileira é
objeto do discurso, perpassada por símbolos lusitanos, numa operação
sofisticada de aglutinação, marca de um enviesamento da consciência colonizada:
Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ocorre então um soneto incidental, reforçando o
paroxismo entre a alma nostálgica e lírica e a violência da colonização, tomada
aqui como metáfora da própria ditadura militar:
Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas o meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa...
Novamente, os símbolos da natureza e da cultura
ideologizadas de Brasil e Portugal se aglutinam, formando uma consciência
híbrida, a qual já não distingue quem é o colonizador, quem é o colonizado:
Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
No que o Brasil de fato deve se tornar para cumprir
seu ideal de "imenso Portugal": introjetar o império opressor ou a
pátria libertada pela revolução? Eis o dilema que a canção deixa no ar, a
partir de um deslocamento de sentido sugerido pela ambigüidade da sentença
final.
CORRENTE
Enquanto Construção e fado tropical expressam o ápice da tensão não-ser e
não-tempo, em suas dimensões individual-classista e coletiva-nacional, Corrente, samba
alegre e ritmado, pode ser visto como um dos melhores exercícios de mensagem
cifrada contra a ditadura.15 Chico faz
o compositor confundir-se com o "eu poético" que, a princípio, parece
assumir o seu lugar no "coro dos contentes" da ditadura militar.
Parte do álbum Meus caros
amigos, de 1976, o samba já apresentava algumas ousadias
lúdicas que caracterizariam as canções da "abertura". Neste jogo
lúdico entre o dizer e o não-dizer, novamente estão operando as categorias do
ser e do tempo.
A expressão "samba bem pra frente" já
apresenta um posicionamento em relação ao tempo. Lembremos que "pra
frente" era uma das expressões ideológicas mais fortes do discurso
ufanista dos militares no poder, verdadeira epígrafe da era Médici. Mas nesta
canção a expressão é invertida, denunciando o falso fluxo da história, cujo
sentido é dado pela obrigação de fazer parte do coro dos contentes ("o
samba tá bem melhorado"). Como já dissermos, o eu poético que, neste caso,
se confunde com o próprio compositor, falsamente une-se a esse coro.
Entretanto, destece a própria poesia, como Penélope enganando seu pretendente.
Nesta canção, Chico Buarque faz o tempo refluir, pois sugere que a melancolia é
um antídoto contra o ufanismo eufórico do discurso do poder. Esta afirmativa
não é figurada, tomada a partir do conteúdo do poema. A própria estrutura e a
disposição dos versos realizam a desconstrução do sentido. A chave da
decodificação está no próprio título.16
Na primeira parte, proposição de assertivas em
forma versificada, o sentido parece ser o da autocrítica de um compositor
outrora crítico ao regime e ao sistema:
Eu hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Mas a "corrente pra frente" sutilmente
parece refluir para o discurso crítico e desconstrói o tempo do ufanismo que
parecia se afirmar na primeira parte. É no segundo verso de cada par que o
compositor diz o que ele "realmente acha" da realidade (configurada
no verso anterior); mas o primeiro verso seguinte repõe o jogo de
esconde-esconde com a ditadura e a censura, sendo negado pelo verso seguinte e
assim sucessivamente. Então, como numa corrente, o encadeamento alternado dos
elos traduz o verdadeiro sentido da canção:
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
O QUE SERÁ
A canção O que será teve duas versões: a flor da terra e à flor da pele. Ambas foram grandes sucessos de 1976/77, principalmente a versão
cantada por Chico no álbum Meus caros amigos (Flor da Terra), de
andamento mais acelerado e com ênfase mais épica do que lírica, é uma das
maiores expressões poéticas dos anseios da oposição civil por um novo tempo.
Nesta canção Chico Buarque canta a resistência ao regime militar na forma de um
amanhã iminente. A ameaça do não-tempo — não ser, produtos da experiência
autoritária produtora do silêncio, estaria por um fio.
O fluxo de consciência crítica do ser parece tomado
de um arrebatamento. Não aquele arrebatamento trágico e autodestrutivo do
operário de Construção, mas um arrebatamento quase erótico, quase indizível, posto que é
energia acumulada, represada e reprimida, pronta para explodir.
Temos a ocorrência poética de um tempo da irrupção
do ser na iminência do gozo da liberdade. Chico expressa, nesta canção, a
possibilidade da reconquista da experiência do ser no tempo, no limite de
tornar-se consciência, mas ainda experiência confusa, caótica, dilacerada. De
maneira contundente, Chico funde desejo e política, indivíduo e sociedade,
cabeças e bocas, governo e não-governo, sagrado e profano. Os "poetas
delirantes e profetas embriagados" se confundem com a "romaria dos
mutilados" e a "fantasia dos infelizes". Sentido e não-sentido.
Assim, O que será, diferente dos paradigmas mais comuns da canção engajada, não canta a
certeza sobre o futuro. Antes, é uma canção de uma era de incertezas, fruto da
abertura política vigiada e ainda temerária proposta pelo governo Geisel
(1974-1979).
A primeira estrofe aponta para um clima de
conspiração, no qual a palavra se mescla ao silêncio. "Que anda na cabeça,
anda nas bocas", traduz o movimento da idéia tornando-se palavra, na
iminência de tornar-se gesto incontrolável, irrepreensível e imprevisível:
O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
Que gritam nos mercados, que com certeza
Está na natureza, será que será
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho
A segunda parte anuncia a forte carga de desejo,
transformando a possibilidade de liberdade do ser em estado de êxtase quase
erótico, veiculado por linguagens transgressoras, nem sempre lógicas e
racionais.
O que será que será
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia-a-dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido
Finalmente, o tempo da iminência transforma-se no
tempo da certeza utópica. A irrupção da liberdade, explodindo do desejo, rompe
as consciências individuais, sugerindo um ser coletivo e amalgamado na
experiência histórica ("todos os destinos irão se encontrar"). É
curioso notar que, enquanto a segunda parte anuncia uma espécie de apocalipse
social, com personagens deserdados e transgressores (amantes/romaria dos
mutilados/profetas embriagados/ infelizes/meretrizes / plano dos bandidos/desvalidos),
a terceira parte sugere que este apocalipse necessário (revolução?) será
consagrado até mesmo pelo Padre Eterno, como se fosse o resultado necessário de
um plano superior da Providência, ou, em termos mais apropriados para a época, da
razão histórica, movimento que iria recolocar o ser social no tempo forte da
História.
O que será que será
Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
Porque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E o mesmo Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo
PEDAÇO DE MIM
Entretanto, nem todas as canções de Chico Buarque -
da fase da abertura - realizam o reencontro do ser com o tempo. Numa de suas
canções mais fortes17 , Pedaço de mim, Chico
sugere o confronto entre o lírico e o épico: ser sem tempo quer recuperar o
tempo de outro ser que jaz em silencio (Saudade dói latejada / é como uma
fisgada / num membro que já perdi). Anuncia-se a presença de uma ausência que
não se realiza como consciência e como experiência (a erfahrung —
experiência forte benjaminiana): "arrumar o quarto de um filho que já
morreu". Mais do que nostalgia lírica, fruto da melancolia, ocorre aqui
uma paralisia da experiência e do fluxo de tempo. Novamente a ameaça do não-ser
e do não-tempo, vividos deste modo sob o signo da perda irreparável provocada
por uma época de opressão extrema. Paradoxalmente, este sentimento tenta se
resolver no ato de dizer "Adeus", revelando a tensão entre
"luto" e "melancolia", diante da perda do ser amado (não é
por acaso que a também melodia repousa nesta palavra). Não há jactância, ao
contrário, a música termina com um sabor de ausência prolongada e irreparável.
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus
QUESTÕES FINAIS
Chico Buarque de Hollanda não foi apenas o cronista
dos anos de chumbo — aquele que cantou e contou-nos sobre o seu tempo. A obra
de Chico nos anos 70 — e sua grande popularidade e importância sociocultural —
pode estar ligada a este aspecto — teve a singularidade de cantar a
perplexidade do ser (isto é, aquele que tem consciência) no tempo adverso da
liberdade sonhada. Tempo de rupturas e crise de utopias (traduzida na idéia de
resistência — manter-se vivo sem se projetar no amanhã). Tempo da modernização
conservadora que selou um novo destino histórico para o Brasil. A partir de
então, toda a inocência ficou proibida, e o Brasil, definitivamente, passou a
ser o "País da delicadeza perdida" (que talvez nunca tenha realmente
existido...).
Num certo sentido, todos os destinos se encontravam
nas canções de Chico, ao menos os de um certo grupo de consciências críticas
que marcaram a oposição civil ao regime militar. O limite deste gesto era que
ele durava, nos anos 60 e 70, a exata medida de uma canção, dado o fechamento
da arena pública de atuação política. Na experiência individual e coletiva de
ouvir canções, ser e tempo pareciam se reconciliar momentaneamente numa espécie
de promessa (ou estado) de felicidade, ainda que fugidia. A obra de Chico
expressa radicalmente a gama de experiências do ser no tempo, no contexto
particular do Brasil dos anos 60 e 70, mesmo fazendo de sua matéria poética a
sombria ameaça do triunfo do não-ser e do não-tempo, enquanto diluição da
experiência coletiva da história. Entre um e outro, entre melancolia,
perplexidade e "promessa de felicidade" revelava-se uma determinada
faceta da sociedade civil diante do difícil tempo dos "anos de
chumbo".
Na experiência social da MPB daquele contexto, o
tempo não operava como monotonia ou imobilidade forçada, mas como iminência de
um "novo tempo", ainda que obstaculizado pela experiência da
repressão. Mas, quando isto ocorria, sempre havia uma canção para consolar e
arejar o ouvinte com o bafio da esperança e da liberdade.
PARABÉNS PELO ARTIGO.
Muito bom esse artigo, é sempre bom ler sobre esse período da escuridão brasileira.
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