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terça-feira, 17 de maio de 2016

CRÔNICA DE Millôr Fernandes "O Leão e o Rato "





O Leão e o Rato 

Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão ( por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta ( e das fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que os dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante vários dias. Disse o Leão: 
- Nem um boi. Nem ao menos um paca. Nem sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d'oeuvres de uma futura refeição.   
Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do chão onde estava, lançou um olhar ao rato que o fez estremecer até a medula. " A amizade resistiria à fome?" - pensou ele. E, sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante pé e sumiu da frente do amigo ( ? ) faminto. Sumiu durante muito tempo. Quando voltou, o Leão passeava em círculos, deitando fogo pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá explicar onde conseguiu ( fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não fosse animal queijeiro, lambeu os beiços e exclamou:   
- Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar o queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A parte do rato para o rato; para O Leão, a parte do Leão.
A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato percebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos não mais apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. O Leão segurou com as patas o queijo todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o rato pelo seu alto critério:
- Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha. Isso é que se chama justiça. Quando eu voltar ao poder, entregarei sempre a você a partilha dos meus bens que me couberem no litígio com os súbitos. Você é um verdadeiro e egrégio meritíssimo! Não vai se arrepender!
E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que podia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os buracos do queijo, E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que podiam seus fracos pulmões:
- Longa vida ao Rei Leão ! Longa vida ao Rei Leão! 

MORAL : Os ratos são iguaizinhos aos homens. 
                                  
                                                                              Millôr Fernandes  


CRÔNICA DE Rubem Alves " O benefício da dúvida "





O benefício da dúvida



Cliquei o botão do controle remoto da televisão e me vi dentro de um enorme templo, completamente lotado. O pregador dizia aos fiéis: “A dúvida é a principal arma do diabo”. Ele não teve coragem de dizer tudo o que essa afirmação piedosa contém. Se ele está no púlpito, lugar sagrado, deve ser o bispo ou missionário. Sendo bispo ou missionário, tem acesso privilegiado a Jesus: o Peixe Dourado lhe revelou pessoalmente os mistérios do Mar… Fala diariamente com Jesus. Segue-se que aquilo que ele fala são palavras de Jesus. Assim, se alguém tem dúvidas sobre o que ele diz, está duvidando de Jesus. Conclusão: quem duvida do que ele diz está enredado nas artimanhas do diabo… Penso o contrário: que as convicções são as principais armas do diabo. As maiores atrocidades da história da humanidade, religiosas e políticas, foram cometidas por pessoas que não tinham dúvidas sobre a verdade dos seus pensamentos. As pessoas que duvidam, ao contrário, são tolerantes. Sabem que o que pensam não é a verdade. Seus pensamentos são meros “palpites”. Por isso ouvem o que outros têm a dizer, pois pode ser que a verdade esteja com eles…

                                                                                              Rubem Alves

CRÔNICA DE Fernando Sabino "Eloquência Singular "





Eloquência Singular

Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:
— Senhor Presidente: eu não sou daqueles que...
O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:
— Não sou daqueles que...
Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caia nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:
— ...embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do povo nesta Casa, não sou...
Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.
— ...daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...
Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:
— Não sou daqueles que...
Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:
— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada...
Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:
— Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.
Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:
— ...não sou daqueles que, conforme afirmava...
Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:
— Senhor Presidente. Meus nobres colegas.
A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...
— Como?
Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:
— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.
Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.
— Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.
— Eu? Mas eu não disse nada...
— Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.
O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.
— Que é que você acha? — cochichou um.
— Acho que vai para o singular.
— Pois eu não: para o plural, é lógico.
O orador seguia na sua luta:
— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...
Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta...
— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.
— Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública...
E entrava por novos desvios:
— Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...
O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:
— Senhor Presidente, meus nobres colegas!
Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:
— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.
Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

                                        
                                                                                                 Fernando Sabino



CRÔNICA DE Monteiro Lobato " O VELHO E O MENINO"





O velho, o menino e a mulinha

O velho chamou o filho e disse:
- Vá ao pasto, pegue a mulinha e apronte-se para irmos à cidade, que quero vendê-la.
O menino foi e trouxe a mula. Passou-lhe a raspadeira, escovou-a e partiram os dois a pé, puxando-a pelo cabresto. Queriam que ela chegasse descansada para melhor impressionar os compradores.
De repente:
- Esta é boa! - exclamou um visitante ao avistá-los. - O animal vazio e o pobre velho a pé! Que despropósito! Será promessa, penitência ou caduquice?...
E lá se foi, a rir.
O velho achou que o viajante tinha razão e ordenou ao menino:
- Puxa a mula, meu filho! Eu vou montado e assim tapo a boca do mundo.
Tapar a boca do mundo, que bobagem! O velho compreendeu isso logo adiante, ao passar por um bando de lavadeiras ocupadas em bater roupa num córrego.
- Que graça! - exclamaram ela. - O marmanjão montado com todo o sossego e o pobre do menino a pé... Há cada pai malvado por este mundo de Cristo... Credo!...
O velho danou-se e, sem dizer palavra, fez sinal ao filho para que subisse à garupa.
- Quero só ver o que dizem agora...
Viu logo. O Izé Biriba, estafeta do correio, cruzou com eles e exclamou:
- Que idiotas! Querem vender o animal e montam os dois de uma vez... Assim, meu velho, o que chega à cidade não é mais a mulinha; é a sobra da mulinha...
- Ele tem toda razão, meu filho; precisamos não judiar do animal. Eu apeio e você, que é levezinho, vai montado.
Assim fizeram, e caminharam em paz um quilômetro, até o encontro dum sujeito que tirou o chapéu e saudou o pequeno respeitosamente.
- Bom dia, príncipe!
- Porque prícipe? - indagou o menino.
- É boa! Porque só príncipes andam assim de lacaio à rédea...
- Lacaio, eu? - esbravejou o velho. - Que desaforo! Desce, desce, meu filho e carreguemos o burro às costas. Talvez isso contente o mundo...
Nem assim. Um grupo de rapazes, vendo a estranha cavalgada, acudiu em tumulto com vaias:
- Hu! Hu! Olha a trempe de três burros, dois de dois pés e um de quatro! Resta saber qual dos três é o mais burro...
- Sou eu! - replicou o velho, arriando a carga. - Sou eu, porque venho há uma hora fazendo não que quero mas o que quer o mundo. Daqui em diante, porém, farei o que manda a consciência, pouco me importando que o mundo concorde ou não. Já que vi que morre doido quem procura contentar toda gente...


Monteiro Lobato


CRÔNICA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE " VIÚVA LOIRA"




VIÚVA LOURA

- "Viúva, 21 anos..."
- Tadinha. A vida é isso.
- "Loura..."
- Melhorou.
- "Fazendeira, rica..."
- Epa, muda completamente de figura.
- "Pertencente a tradicional família mineira..."
- Corta essa!
- "Recém-chegada do interior..."
- Então, não custa sondar a barra.
- "Procura companhia masculina..."
- Ainda bem que é masculina. Tou às ordens.
- "Que seja jovem..."
- Você acha que 38 anos está na pauta?
- "Bem intencionado..."
- Nunca fui outra coisa na vida.
- "De fino trato..."
- Não é por me gabar, mas...
- "Conhecedor dos pontos pitorescos do Rio..."
- Que é que ela entende por pontos pitorescos? Eu prefiro pontos estratégicos.
- "Para passeios e ..."
- Etc., lógico.
- "Futuro compromisso matrimonial..."
- Corta! Corta!
- É mesmo.
- Aliás, eu não tenho mais de 38. Tinha, semana passada.
- E rica... Rica de que? Talvez de predicados apenas.
- Poxa, até parece que você está querendo a viúva pro seu bico. Pera aí, mau- caráter.
- Eu? Vê lá se eu vou nessa onda de anúncio. Tou prevenindo pra você não se grilar. Viúva, mineira, loura... Se é mineira, não deve ser loura. Se é loura. É artificial. Se é artificial...
- Deixa a viuvinha ser loura e mineira, deixa.
- Olha, eu conheci uma loura que, além de outros negativos, era careca.
- Ora, peruca resolve.
- Sei não, mas tudo isso junto- mineira, viúva, loura, 21 anos, rica...
- Que é que tem?
- É exagero. Não precisava Ter tantas qualidades.
- Foi uma graça de Deus.
- Você não merece tanto.
- Será outra graça de Deus.
- Deus não deve ser assim tão desperdiçado com suas graças.
- Lá vem você querendo dar instruções ao Altíssimo. Perde essa mania.
- Bom, mas você não sabe que mineiro esconde milho até de monjolo?
- Continua.
- "Cartas com sigilo absoluto..."
- Evidente.
- "Indicações pessoais..."
- Minha ficha é mais limpa do que caixa d'água de edifício quanto o síndico vai ao terraço.
- "E fotos..."
- Arrgh! Só tenho 3x4, muito fajuta. Mas tiro de calção, frente, perfil e fundos.
- "Para a portaria desse jornal, sob n° 019 834."
- Pera aí. Tou anotando. 019?
- 834.
- Legal. 834 é o número de meu edifício, 19 é pavão, que tem a perna dourada. Lê mais.
- Já li tudo, ué.
- Lê outra vez. Repete.
- Vai decorar?
- Vou gravar melhor na nuca, vou raciocinar em bloco, vou...
- Se habilitar, né?
- Correto.
- Calma, rapaz. Sabe lá que espécie de viúva é essa?
- Vou ver pra conferir.
- Pode nem ser viúva.
- E daí?
- Diz que tem 21 anos, mas quem garante que não é modéstia? Às vezes tem três vezes 21.
- Então você admite que ela é mineira.
- E que cria galinha sem ração, na base da parapsicologia?
- Também sou mineiro, uai.
- E nunca me confessou. Eu jurava que você fosse capixaba.
- Fui. Questão de limites, minha terra passou pra banda de cá. Não espalha, sim?
- Me tapeou esse tempo todo.
- Esquece.
- Vai ser dura a parada: mineira loura versus mineiro mascarado.
- Fica em família, né?
- A tradicional?
- As duas. Eu na minha, ela na dela.
- Agora sou eu que digo: tadinha.
- Por quê? Se ela botou anúncio, quer transar. Eu transo. No figurino.
- É verdade que tem muito carioca por aí, muito paulista, muito nortista, espiando maré. Talvez você chegue tarde.
- Duvido. Você sabe que nessas coisas sou meio Fittipaldi. Comigo é Fórmula-1.
- Mineiro contando prosa? Nunca vi isso.
- Bem, mineiro é capaz de contar prosa só pra esconder que é mineiro...
- Chega, amizade, você já ganhou a viuvinha com fazenda e tudo, podes crer!

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE